Warren Goldstein[1] – The Jerusalem Post

Precisamos encontrar uma maneira melhor para o futuro, uma maneira de falar uns aos outros – especialmente quando discordarmos – com bondade e respeito.

As últimas semanas viram, de novo, velhas divisões e dolorosas animosidades em erupção dentro da sociedade israelense. O que é particularmente trágico é que o catalisador para reabrir estas feridas foi a ação de um pequeno grupo de criminosos. O fato de que eles estavam vestidos com traje religioso não deve nos enganar: os seus atos de abuso verbal e outros comportamentos degradantes constituem uma grave violação à lei e os valores da Torá.

Em um testamento ético aos seus filhos, Rabi Pinchas conhecido como o Maguid[2] de Polachak, um dos eminentes sábios da Torá dos últimos cem anos e um discípulo do Gaon de Vilna[3], alertou sobre a falsa devoção.

O exemplo que ele dá é do livro de Ester, quando o rei Achashverosh organizou um grande banquete para comemorar a derrota do povo judeu, a destruição do Primeiro Templo e o fato de que não havia sido reconstruído.

No banquete, o rei Achashverosh utilizou os utensílios sagrados do Primeiro Templo, que ele recebeu do avô de sua esposa, o rei Nabucodonosor da Babilônia que havia destruído o Templo. Ele também usava a roupa do Sumo Sacerdote.

O Maguid de Polachak diz que uma pessoa que parece religioso e devoto do lado de fora, mas não age dessa forma no interior é como o rei Achashverosh vestindo a roupa do Sumo Sacerdote. O Rei Achashverosh era um inimigo do povo judeu e vestir as vestes do Sumo Sacerdote, certamente não o fazia Sumo Sacerdote.

Assim, também, diz o Maguid de Polachak, que uma pessoa que apresenta uma imagem exterior de fé e compromisso religioso, mas não vive de acordo com estes valores faz um dano enorme. Pessoas que se vestem como judeus religiosos, mas desafiam as normas da Halachá[4] sobre o comportamento, interpessoal ético por atacar, agredir verbalmente ou de forma degradante a outras pessoas, ou causar vergonha e grave dor emocional através do mau uso do simbolismo do Holocausto, são como Achashverosh ao se vestir com as roupas do Sumo Sacerdote.

Uma analogia moderna: Se um bando de ladrões se vestirem como policiais e assaltarem um banco, você diria que o banco tinha sido assaltado pela polícia? Obviamente que não, o banco foi roubado por criminosos vestidos como policiais. As pessoas que violam a Halachá, que proíbe qualquer forma de abuso verbal ou conduta que cause dor a outra pessoa, usam apenas a parte de se vestir como religiosos. Chamar essas pessoas “extremistas religiosos” seria como chamar ladrões de banco “extremistas capitalistas” porque eles estão tentando ganhar dinheiro através de métodos extremos. Eles não são extremistas religiosos, pois eles são vigilantes[5] criminais, porque eles não operam sob os auspícios ou instruções de qualquer autoridade rabínica reconhecida.

O Judaísmo da Torá é composto de duas categorias de mitzvot: bein adam laMakom – nossas responsabilidades para com D’us – e bein adam lachavero – nossas responsabilidades para com nossos semelhantes. O Judaísmo da Torá não pode ser compartimentalizado.

Ao Rosh Yeshivá[6] de Telzer, Rav Mordechai Katz, foi lhe perguntado uma vez como ele explica uma pessoa religiosa que mente e faz fraudes nos negócios. Ele respondeu: “Como você explica uma pessoa religiosa que come no dia de Yom Kipur?” Quem perguntava respondeu que tal pessoa não é religiosa. Rav Katz disse que também não é aquele que é desonesto. Uma pessoa que verbal ou emocionalmente abusa ou prejudica outra pessoa não pode ser chamada religioso.

A gravidade do pecado de humilhar alguém publicamente pode ser visto na Guemará[7] (Bava Metzia 58b) fazendo-o equivalente ao assassinato.

Os autores desses atos criminosos carregam a responsabilidade pelas suas ações, o resto da sociedade é responsável pela reação a estes acontecimentos, que, tragicamente, permitiram envenenar a atmosfera e as relações dentro do mundo judaico, o que fez que se espalhasse um incêndio de disputa, suspeita e ódio na sociedade judaica, particularmente em Israel. A retórica divisionista após estes eventos tem causado enormes prejuízos para o tecido da sociedade israelense, colocando religiosos e seculares, bem como diferentes comunidades religiosas – uns contra os outros.

Estes acontecimentos recentes apenas reacenderam velhas divisões e animosidades. São essas divisões e as palavras agressivas e odiosas que as acompanham que precisamos corrigir com bondade, respeito e derech eretz[8]. Todas as comunidades judaicas – no entanto, ideologicamente diversas, religiosas ou seculares – necessitam estender a mão uns aos outros com amizade.

Este não é um sonho utópico. Tem, como um exemplo, alcançado em grande parte na comunidade judaica sul africana, onde, geralmente, os judeus de todo o espectro interagem uns com os outros, com respeito e até amizade, embora com todas as fraquezas humanas e naturais imperfeições.

Um dos grandes líderes rabínicos do século 20, o rabino Yisrael Meir Kagan, conhecido como Chafetz Chaim[9], protestou contra a controvérsia e a dissensão – a machloket – em muitas cartas públicas e em seus livros.

Ele escreveu que a machloket, juntamente com os seus pecados ligados à lashon hara (maledicência) e similares, provoca morte, destruição e desintegração. Ele cita várias fontes talmúdicas que mostram que o fogo da machloket destrói casamentos e famílias, sinagogas e comunidades e, por fim, destrói toda a sociedade.

O Chafetz Chaim cita o Talmude, que diz que D’us vai perdoar a traição de idolatria mais facilmente do que o pecado de machloket. O exemplo clássico disto é quando D’us perdoou o povo judeu pelo pecado do Bezerro de Ouro, mas não perdoou aqueles que estavam envolvidos em acender os fogos da machloket no pecado da disputa de Korach e eles foram destruídos por completo.

O povo judeu está enfrentando muitos desafios e ameaças no momento. É um tempo para voltar à HaShem sinceramente, e o primeiro passo em direção a esse teshuvá[10] é melhorar nossas relações, falar uns aos outros com bondade e gentileza e abrir nossos corações para o outro.

Como o Chafetz Chaim escreveu em uma de suas cartas dirigidas ao público, ele se sentia “muito angustiado de que mesmo em nossa Terra Santa a inclinação para o mal tenha tido sucesso e também se tenha caído na armadilha da machloket.”

Ele conclui sua carta com um apelo sincero: “e, portanto, meus irmãos e amigos, tenham piedade de si mesmos e de Klal Israel, e não deixem todo mundo se extinguir no fogo da machloket para que Seu grande nome não seja profanado nunca mais e desta forma merecer ouvir a voz que anuncie a paz no mundo.”

A metáfora da Chafetz Chaim do fogo que se espalha é comovente: quando um se enfurece por litígios, que consomem tudo em seu caminho, suas conseqüências destrutivas não podem ser previstas, como o Chafetz Chaim escreve nessa carta: “Quem sabe o que pode vir com isso? Que D´us tenha misericórdia!”. Na conclusão desta carta, o Chafetz Chaim assinou seu nome “aquele que escreve com o coração partido.”

O quanto seu coração estaria partido se ele vesse o que está acontecendo hoje? E o que de D´us em si próprio? Uma grande comunidade judaica foi destruída, diz o Talmude (Yoma 9b), por causa dos pecados de ódio, lashon hara e machloket. Não ousaremos deixar isso acontecer novamente.

Não podemos permitir que os fogos da machloket, dessas divisões e animosidades de longa data continuem ardendo. Precisamos encontrar uma maneira melhor para o futuro, uma forma de falar uns aos outros – especialmente quando discordarmos – com bondade e respeito, com simples derech eretz.

De todos os lados da divisão, devemos trazer para o discurso público os valores apresentados no versículo (Mishlei 3:17) que descreve a quinta-essência da Torá: “Os seus caminhos são caminhos de delícias e suas trilhas são as da paz”.

Tradução do inglês ao português: Alberto Milkewitz
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[1] Warren Goldstein é Rabino Chefe da África do Sul. NT

[2] Maguid no Judaísmo é um pregador religioso itinerante tradicional da Europa Oriental. NT

[3] Gaón de Vilna ou Elijah ben Shlomo Zalman Kramer (1720-1797), foi um talmudista, halachista, kabalista e o primeiro líder do Judaísmo não chassídico nas ultimas centúrias. Foi um das autoridades rabínicas mais influentes desde a Idade Média e é contado entre os sábios Acharonim. NT

[4] Halachá é o nome do conjunto de leis da religião judaica, incluindo os 613 mandamentos que constam na Torá e os posteriores mandamentos rabínicos e talmúdicos relacionados aos costumes e tradições, servindo como guia do modo de viver judaico. NT

[5] Vigilantes, grupo ou gang de delinqüentes em México e América Central. NT

[6] Rosh Yeshivá é o titulo dado ao reitor de uma academia talmúdica (yeshivá). O conceito é formado pelas palavras rosh — que significa cabeça e yeshivá — um centro de educação judaica religiosa focado na Torá e no Talmude. Do Rosh Yeshivá se requer um vasto conhecimento talmúdico e habilidade para analisar o Talmude e apresentar novas perspectivas. NT

[7].Guemará é a parte do Talmude que contém os comentários e análises rabínicas da Mishná. Depois da publicação da Mishná pelo Judá HaNassi, conhecido como “o Príncipe” (cerca do ano 200 da era comum), o seu trabalho foi estudado exaustivamente geração após geração por rabinos na Babilônia e em Israel. As suas discussões foram escritas numa série de livros que se tornaram a Guemará, a qual quando combinada com a Mishná constituiu o Talmude. NT

[8] Esta expressão é utilizada para se referir também a boas maneiras, bom trato. Torá im derech eretz é a filosofia do Judaísmo ortodoxo articulada pelo Rabino Samson Raphael Hirsch (1808–88), que formaliza uma relação entre o Judaísmo tradicionalmente observante e o mundo moderno. Alguns chamam esta modalidade como Neo-ortodoxia ou Ortodoxia moderna, uma linha que se mantém ortodoxa na observância e no estudo, mas dialoga com as visões acadêmicas e cientificas em geral. NT

[9] Chafetz Chaim é um livro sobre leis judaicas da fala escrito pelo rabino Israel Meir Kagan. O livro se refere às mitzvot relacionadas com a fala correta e a proibição da difamação. O titulo deste livro pelo qual este sábio acabou sendo conhecido provem dos Salmos 34:12–15: O tema do livro é a Lashon Hara e o rabino Kagan oferece uma numerosa serie de fontes da Torá, do Talmude e dos Rishonim (primeiros grandes comentadores) sobre a severidade da lei judaica sobre a maledicência, o bisbilhoteiro, boatos e mexericos. NT

[10] Teshuvá do hebraico retorno ao cumprimento das mitzvot.