A (re)descoberta de um novo tesouro iídiche na Lituânia

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Por Joseph Berger

Em uma de suas manobras mais estranhas e assustadoras, os nazistas que ocuparam a Lituânia reuniram livros e documentos em hebreu e iídiche com o objetivo de criar uma coleção de referência sobre o povo que pretendiam aniquilar.

Mais bizarro ainda foi terem nomeado intelectuais e poetas judeus para selecionar os melhores exemplares para estudo.

Esses “funcionários”, cujo trabalho era filtrar o conteúdo de uma importante biblioteca judaica em Vilna, acabaram escondendo milhares de volumes e registros, colocando-os sob as roupas para guardá-los em algum sótão ou bunker subterrâneo.

Em 1991, uma grande parte dessa coleção foi encontrada no porão de uma igreja e considerada um verdadeiro tesouro da história judaica.

Alguns meses atrás, porém, os curadores do Instituto YIVO para Pesquisa Judaica de Manhattan, sucessor da biblioteca de Vilna, foram informados da existência de outras 170 mil páginas que, não se sabe como, passaram despercebidas no porão da mesma igreja.

Segundo especialistas, essa leva é ainda mais valiosa e interessante. Entre os achados estão cinco cadernos de poesias de Chaim Grade, considerado, ao lado de Isaac Bashevis Singer, um dos principais novelistas iídiches de meados do século XX; duas cartas de Sholem Aleichem, o contador de histórias cujos contos do Tevye, o Leiteiro formaram a base de “Um Violinista no Telhado”; um postal escrito por Marc Chagall, o pintor modernista.

“São puro ouro”, sentencia David E. Fishman, professor de História Judaica do Seminário Teológico Judeu, que foi a Vilna, em julho, a convite do YIVO, para avaliar a importância da novidade – e voltou com aquele tipo de entusiasmo que se vê em um explorador que acabou de descobrir uma terra desconhecida.

Uma seleção de dez itens do tesouro recém-descoberto – que inclui manuscritos literários, cartas, diários, livros de registros de sinagogas, pôsteres de teatro e objetos efêmeros – está em exibição da sede do instituto, situada na West 16th Street, em Nova York.

Em entrevistas, Fishman e Jonathan Brent, diretor executivo do YIVO, discutiram outras descobertas, incluindo um dos primeiros poemas de Abraham Goldfaden, pai do incipiente teatro iídiche na Europa e no Lower East Side de Manhattan, e dez poemas escritos à mão, no gueto de Vilna, por Abraham Sutzkever, um dos maiores poetas iídiches. Em um deles, o autor expressa seu medo de que “a morte esteja chegando, montada em uma bala/para destroçar em mim meus sonhos mais belos”.

Brent e sua equipe se disseram empolgados também com os itens mais prosaicos – como os exemplares de “Sherlock Holmes” e outros entretenimentos populares que divertiam os judeus antes da guerra, e um guia astronômico, com um conjunto de marcadores, para calcular quando iam cair os feriados religiosos, dadas as variações na duração dos meses lunares judeus. Uma “autobiografia” de 1933, de uma garotinha desnutrida no primeiro ano escolar, Bebe Epshtein, descreve como seus pais a forçavam a comer contando-lhe histórias mirabolantes. “Quando eu abria a boca, eles punham uma garfada”, ela escreve.

Segundo os especialistas, muitos itens revelam as dificuldades do dia a dia na Europa Oriental quando a região era o centro do mundo judeu, e não Israel ou o Lower East Side.

Quase tão fascinante quanto os achados em si é a história da redescoberta e resgate dos documentos, da qual já se sabia praticamente tudo, mas que ganhou mais detalhes com a nova revelação.

Quando os nazistas ocuparam a Lituânia, de 1941 a 1944, estavam decididos a incinerar ou destruir as coleções judaicas daquele país, principalmente o acervo do YIVO que, de 1925 a 1940, foi a biblioteca e registro mais importante da vida dos judeus na Europa Oriental; porém, com a incoerência que lhes era peculiar, decidiram preservar um terço da coleção para levar para um centro de pesquisas perto de Frankfurt, na Alemanha, que estudaria a “questão judaica”, mesmo que fizessem questão de exterminar os judeus completamente. (Só na Lituânia, foram dizimados 90 por cento da população pré-guerra, de 160 mil.)

Eles precisavam de falantes do idioma iídiche para analisar e selecionar o material; assim, usaram 40 moradores do gueto, como Sutzkever e outro poeta boêmio, Shmerke Kaczerginski, como trabalhadores escravos. Apesar do risco de serem mortos por um pelotão de fuzilamento, esses elementos da “brigada do papel” resgataram milhares de livros e documentos.

Quando os alemães foram expulsos da Lituânia pela URSS, sobreviventes como Sutzkever levaram parte das preciosidades para Nova York. (Os soviéticos não viam com bons olhos nada que evocasse lealdades religiosas ou étnicas.) Enquanto isso, um bibliotecário gentio, Antanas Ulpis, que estava organizando o que restara da biblioteca nacional em uma antiga igreja, a St. George’s, empilhou todo o material judeu no porão, para escondê-lo das forças de Stálin. Com isso, é considerado pelo YIVO como um tipo de Oskar Schindler dos documentos.

O grosso da coleção – cerca de 250 mil páginas – foi recuperado depois do colapso da União Soviética, em 1991.

No ano passado, a coleção inteira foi transferida para a Biblioteca Nacional da Lituânia Martynas Mazvydas, reinaugurada em um prédio de colunatas grandioso; em maio, as autoridades informaram Brent da nova descoberta, o tesouro de 170 mil documentos. Como foram mantidos no mesmo porão, mas em sala separada, nunca tinham sido avaliados antes porque nenhum dos arquivistas sabia ler iídiche/hebreu.

A Lituânia preferiu manter todo o material no centro Judaico da biblioteca, como parte de seu patrimônio nacional, mas permitiu ao YIVO digitalizá-lo para disponibilizá-lo para uso do grande público e permitir que alguns itens fossem exibidos em Manhattan.

“Os estudiosos levarão décadas para analisar tudo isso”, constata Fishman que, este mês, lançou “The Book Smugglers: Partisans, Poets and the Race to Save Jewish Treasures From the Nazis”.

A maior parte do grupo que resgatou esses registros não sobreviveu à guerra. “Trinta e quatro das 40 pessoas que, segundo os especialistas, foram membros da ‘brigada do papel’, morreram – alguns em campos de extermínio como Treblinka, ou de trabalhos forçados, ou de forma aleatória”, explica Fishman. Em 1954, Kaczerginski morreu em um acidente aéreo nos Andes; Sutzkever teve uma carreira ilustre como poeta em Israel e morreu em 2010, aos 96 anos. Ulpis, que ajudou a preservar a segunda leva de documentos do porão, faleceu em 1981.